terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Antígona e os limites do poder civil

Marcello Cerqueira*

Etéocles e Polinices, filhos de Édipo, matam-se em duelo pelo governo de Tebas. Creonte assume o trono de Tebas e condena Polinices a não ser enterrado, seu corpo serviria de pasto para os cães e as aves de rapina, como exemplo para os que, no futuro, intentassem contra seu governo. Revolta-se Antígona, sua irmã. Quer enterrar o seu morto porque, sem os ritos sagrados, a alma do irmão vagaria pelo mundo sem descanso. Desafia Creonte e enterra o irmão com as próprias mãos. As leis dos homens não podem contrariar as leis divinas. Creonte a manda matar. É assim que Sófocles narra a tragédia de Antígona, representada em 422 ou 421 a.C.

Decreto nº 5.584/05 fixou a data limite de 31 de dezembro de 2005, para abrir os arquivos do regime militar e que se encontravam, como ainda se encontram, guardados em sigilo pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Entretanto, a Lei nº 11.111/05, manteve secretos os documentos que ameaçassem “à soberania, à integridade territorial ou às relações exteriores”, entre os quais aqueles relacionados à guerrilha do Araguaia, entre outros. A redação da lei nos remete aos textos, tanto imprecisos quanto autoritários, das diversas leis de segurança do regime militar. De logo, não se entende como a revelação possa atentar contra a “a soberania” ou a “integridade nacional”. Já no surrado capítulo das “relações exteriores”, realmente a abertura dos arquivos vai desvendar ações criminosas conjuntas dos governos militares do Cone Sul na chamada Operação Condor. Mas não vai surpreender os governos hoje democráticos daqueles países, que já abriram seus arquivos. Inclusive revelando aspectos da “colaboração” do regime militar brasileiro com seus congêneres do Cone Sul. A abertura, aqui, vai preencher lacunas e também servir de alerta de que as relações entre países devem se pautar por valores que respeitem os direitos humanos.

Reportagem do “Fantástico” (13.12.2004) mostrou que documentos dos órgãos de informação do Exército, da Aeronáutica, da Marinha, e de outras instituições ligadas à repressão foram incinerados na Base Aérea de Salvador. O programa exibiu 78 fragmentos de fichas, prontuários e relatórios de posse da autoridade Aeronáutica. Os documentos registram “fatos” que vão de 1964, início da ditadura, até 1994, ocasião em que o país já estava redemocratizado. Foi aberto então um “competente” IPM, que nada apurou. Esses acontecimentos (fantásticos) estão a demonstrar que a sociedade não está apenas impedida por “lei” de ter acesso aos arquivos, como ser válido o temor de que outros, ou muitos, já tenham sido incinerados. Ou venham a ser.

É princípio fundamental da República brasileira o respeito (absoluto) “à dignidade da pessoa humana”. “A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado de Direito Democrático, ilumina a interpretação da lei ordinária” (STJ, DJU 26.03.01, p. 473). Nesse sentido, a interpretação da legislação infraconstitucional deve tomar por base esse princípio, iluminar-se nele. Assim, qualquer dispositivo da malsinada Lei nº 11.111/05 que atravanque esse caminho deve ser eliminado por via de argüição de inconstitucionalidade ou mesmo por mandado de segurança, pois legitimados estão os parentes dos desaparecidos.

Nesse quadro, parece contraditória a campanha que o governo federal patrocina de colher elementos sobre mortos e desaparecidos da ditadura. Por um lado, lança uma forte campanha televisiva objetivando depoimentos de pessoas que tenham conhecimento sobre as vítimas; por outro, não abre os arquivos em seu poder sobre as mesmas vítimas. Parece contraditório, mas não é. São ainda os limites do Poder Civil. A ele é permitido avançar até determinado limite. O limite é o confronto com o Poder Militar.

Antigo advogado de presos políticos, sei que não movem sentimentos de revanche nas famílias dos mortos e desaparecidos. E nem pretendem comparar as Forças Armadas de hoje com a pequena parte dela que protagonizou os bárbaros crimes do regime a que serviam. Aqui, apura-se uma talvez verdadeira contradição. Ora, como nenhum chefe militar ou mesmo oficial da ativa das Forças Armadas, além da quase totalidade dos reformados, têm contas a ajustar com a justiça sobre os crimes perpetrados à sombra de uma Instituição permanente e fundamental para o país, por que essa aparente “defesa” de crimes que não cometeram? Sei perguntar. Não sei responder.

Sei, entretanto, como a Antígona de Sófocles, que a recusa à abertura pelo governo dos arquivos da ditadura, se antes, na tragédia grega, era um direito divino, hoje é também norma constitucional que deve ser respeitada: a dignidade da pessoa humana, que não desaparece com a vida.

Os familiares de mortos e desaparecidos políticos têm o Direito e o Dever de enterrar os seus mortos.

Marcello Cerqueira é advogado (07 de novembro de 2009).

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